Mas Maria Eduarda não gostou destes amarelos excessivos.
Depois impressionou-se, ao reparar num painel antigo, defumado, ressaltando em negro do fundo de todo aquele oiro — onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida, gelada no seu sangue, dentro de um prato de cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor, com um ar de meditação sinistra, os seus dois olhos redondos e agoirentos... Maria Eduarda achava impossível ter ali sonhos suaves.
Carlos agarrou logo na coluna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor; e propôs-lhe mudar aqueles brocados, forrar a alcova de um cetim cor-de-rosa e risonho.
— Não, venho-me a acostumar a todos esses oiros... Somente aquele quadro, com a cabeça, e com o sangue... Jesus, que horror!
— Reparando bem — disse Carlos — creio que é o nosso velho amigo S. João Baptista.
Texto: Os Maias, Eça de Queiroz, Biblioteca Digital, Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA, Cap. XIII, pp. 359-360.
Imagem: Hans Memling (c. 1430-1494), pormenor do "Tríptico de São João", 1474;
Memlingmuseum, Sint-Janshospitaal, Bruges (in http://abaixodecao.blogspot.com/2006/10/colorgraphia-xliv.html, 18/05/2009)
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