REVERENDO BONIFÁCIO

Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era (...)o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em Santa Olávia, e recebera então o nome de Bonifácio: (...) era o «Reverendo Bonifácio»
(in QUEIRÓS, Eça de, Os Maias)

terça-feira, 19 de maio de 2009

Na Toca

Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lho foi mostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova recebendo a claridade de uma sala forrada de tapeçarias, onde desmaiavam, na trama de lã, os amores de Vénus e Marte: da porta de comunicação, arredondada em arco de capela, pendia uma pesada lâmpada da Renascença, de ferro forjado: e, àquela hora, batida por uma larga faixa de Sol, a alcova resplandecia como o interior de um tabernáculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tecto, de um brocado amarelo, cor de botão-de-oiro; um tapete de veludo, do mesmo tom rico, fazia um pavimento de oiro vivo sobre que poderiam correr nus os pés ardentes de uma deusa amorosa — e o leito de dossel, alçado sobre um estrado, coberto com uma colcha de cetim amarelo, bordada a flores de oiro, envolto em solenes cortinas também amarelas de velho brocatel, enchia a alcova, esplêndido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas de uma paixão trágica do tempo de Lucrécia ou de Romeu. E era ali que o bom Craft, com um lenço de seda da Índia amarrado na cabeça, ressonava as suas sete horas, pacata e solitariamente.
Mas Maria Eduarda não gostou destes amarelos excessivos.
Depois impressionou-se, ao reparar num painel antigo, defumado, ressaltando em negro do fundo de todo aquele oiro — onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida, gelada no seu sangue, dentro de um prato de cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor, com um ar de meditação sinistra, os seus dois olhos redondos e agoirentos... Maria Eduarda achava impossível ter ali sonhos suaves.
Carlos agarrou logo na coluna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor; e propôs-lhe mudar aqueles brocados, forrar a alcova de um cetim cor-de-rosa e risonho.
— Não, venho-me a acostumar a todos esses oiros... Somente aquele quadro, com a cabeça, e com o sangue... Jesus, que horror!
— Reparando bem — disse Carlos — creio que é o nosso velho amigo S. João Baptista.


Texto: Os Maias, Eça de Queiroz, Biblioteca Digital, Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA, Cap. XIII, pp. 359-360.
Imagem: Hans Memling (c. 1430-1494), pormenor do "Tríptico de São João", 1474;
Memlingmuseum, Sint-Janshospitaal, Bruges (in http://abaixodecao.blogspot.com/2006/10/colorgraphia-xliv.html, 18/05/2009)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

ANGÚSTIA INEXPLICÁVEL

- Porque não havemos de partir já para a Itália? perguntou ela de repente, procurando a mão de Carlos. Se tem de ser, porque não há-de ser já?... Escusávamos de ter estes segredos, estes sustos!
- Sustos de quê, meu amor? Estamos aqui tão seguros como na Itália, como na China... De resto podemos partir mais depressa, se quiseres... Diz tu um dia, marca um dia!
Ela não respondeu, deixando cair docemente a cabeça sobre o ombro de Carlos. Ele acrescentou, devagar:
- Em todo o caso, compreendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olávia, ver o avô...
Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridão como recebendo dela o presságio dum futuro, onde tudo seria confuso e escuro também.
- Tu tens Santa Olávia, tens teu avô, tens os teus amigos... Eu não tenho ninguém!
Carlos estreitou-a a si, enternecido.
- Não tens ninguém! Isso dito a mim! Nem chega a ser injustiça, nem chega a ser ingratidão! É nervoso; e é também o que os ingleses chamam a «impudente adulteração dum facto.»
Ela ficara aninhada no peito de Carlos, como desfalecida.
- Não sei porquê, queria morrer...
Um largo brilho de relâmpago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova. Os molhos de velas de duas serpentinas, batendo os damascos e os cetins amarelos, embebiam o ar tépido, onde errava um perfume, numa refulgência ardente de sacrário: e as bretanhas, as rendas do leito já aberto punham uma casta alvura de neve fresca nesse luxo amoroso e cor de chama. Fora, para os lados do mar, um trovão rolou lento e surdo. Mas Maria já o não ouviu, caída nos braços de Carlos. Nunca o desejara, nunca o adorara tanto! Os seus beijos ansiosos pareciam tender mais longe que a carne, trespassá-lo, querer sorver-lhe a vontade e a alma: - e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabelos soltos, divina na sua nudez, ela lhe apareceu realmente como a Deusa que ele sempre imaginara, que o arrebatava enfim, apertado ao seu seio imortal, e com ele pairava numa celebração de amor, muito alto, sobre nuvens de ouro...
Quando saiu, ao amanhecer, chovia.
Eça de Queirós, Os Maias, cap. XIV (pp. 458-459)

SIMBOLOGIA


Os Maias estão repletos de símbolos.

Afonso da Maia é uma figura simbólica - o seu nome é simbólico, tal como o de Carlos - o nome do último Stuart, escolhido pela mãe. Carlos irá ser o último Maia - note-se a ironia em forma de presságio.

No Ramalhete, esta designação e o emblema que decora a fachada (o ramo de girassóis) mostram a importância da terra e da província no passado da família Maia. A "gravidade clerical do edifício" demonstra a influência que o clero teve em Portugal e no passado desta família.

Por oposição, as obras de restauro, levadas a cabo por Carlos, introduziram o luxo e a decoração cosmopolita; simbolizam uma nova oportunidade, uma reforma da casa (ou do país) para uma nova etapa - é o reflexo do ideal reformista da Geração de Carlos. Carlos é um símbolo da Geração de 70, tal como o é Ega. Tal como o país, também eles caíram no "vencidismo". No último capítulo, a imagem deixada pelo Ramalhete, abandonado e tristonho, cheio de recordações, está muito relacionado com o modo como Eça via o país, em plena crise do regime.

O quintal do Ramalhete, também sofre uma evolução. O fio de água da cascata é símbolo da eterna melancolia do tempo que passa, dos sentimentos que leva e traz. A estátua de Vénus que, enegrece com a fuga de Maria Monforte, no final a sua presença obscura no quintal é uma vaga premonição da tragédia. Ela marca o início e o fim da acção principal.
No quarto da Toca, o quadro com a cabeça degolada e a enorme coruja empalhada são símbolos e presságios de desgraça. Estes aposentos simbolizam o carácter trágico, a profanação das leis humanas e cristãs.
Também um armário do salão nobre da Toca contém uma simbologia trágica. Os guerreiros simbolizam a heroicidade, os evangelistas, a religião e os troféus agrícolas o trabalho: qualidades que existiram um dia na família (e no Portugal da epopeia). Os dois faunos simbolizam os dois amantes numa atitude hedonista e desprezadora de tudo e todos. No final do romance, um partiu o seu pé de cabra e o outro a flauta bucólica, pormenores que parecem simbolizar o desafio sacrílego dos faunos a tudo quanto era excelso e sublimado na tradição dos antepassados.

Não é difícil ler-se o percurso da família Maia, nas alterações sofridas pelo Ramalhete. No início, o Ramalhete não tem vida. Em seguida, habitado, torna-se símbolo da esperança e da vida, é como que um renascimento. Finalmente, a tragédia abate-se sobre a família e eis a cascata chorando, deitando as últimas gotas de água, a estátua coberta de ferrugem; tudo tem um carácter funéreo. O cedro e o cipreste, são árvores que pela sua longevidade, significam a vida e a morte, foram testemunhas das várias gerações da família.

A morte instala-se nesta família. No Ramalhete todo o mobiliário degradado e disposto em confusão, todos os aposentos melancólicos e frios, tudo deixa transparecer a realidade de destruição e morte. E se os Maias representam Portugal, a morte instalou-se no país.
A Toca é o nome dado à habitação de certos animais, o que, desde logo, parece simbolizar o carácter animalesco do relacionamento de Carlos e Maria Eduarda. Os aposentos de Maria Eduarda simbolizam o carácter trágico, a profanação das leis humanas e cristãs.

Os Maias estão também, povoados de símbolos cromáticos: a cor vermelha tem um carácter duplo, Maria Monforte e Maria Eduarda são portadoras de um vermelho feminino, despertam a sensibilidade à sua volta; espalham a morte. O vermelho é, portanto, o símbolo da paixão excessiva e destruidora.
O vermelho da Vila Balzac é muito intenso, indicando a dimensão essencialmente carnal e efémera dos encontros de amor de Ega e Raquel Cohen.
O tom dourado está também presente, indicando a paixão ardente; anunciando a velhice (o Outono), a proximidade da morte. A morte prefigurada pela cor negra, símbolo de uma paixão possessiva e destruidora.
Mãe e filha conjugam em si estas três cores: elas são, portanto, vida e morte, o divino e o humano, a aparência e a realidade, a força que se torna fraqueza.No final, a estátua de Camões é o símbolo da nostalgia do passado mais recuado do país. Constata-se, assim, que a simbologia d'Os Maias é claramente pressagiosa da tragédia.
http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/eca_queiroz/index.html (com adaptações em 18/05/2009).

11º C - TRABALHOS DOS ALUNOS


No âmbito do estudo deste romance de Eça de Queiroz, os alunos do 11º C produziram os trabalhos em vídeo que aqui se publicam.

(NOTA: Os trabalhos estão apresentados tal como foram entregues. )


«Carta de Maria Monforte»


Cristina Freire
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«Entrevista a Afonso da Maia»

Vicente Santos
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«Eco-informação»

Ana Silva, Liliane Jesus e Lisete Fernandes
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«Notícia de Última Hora»

Elsa e Mariana
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«Autobiografia de Maria Eduarda»

Anabel
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«Episódios da Vida Literária»

Marina
#
«O Bilhete»

Andreia e Patrícia
#
«Literatura Portuguesa»
Ana Raquel
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«Ler Com Gosto»
Neide e Vanessa

11ºB - TRABALHOS DOS ALUNOS

No âmbito do estudo deste romance de Eça de Queiroz, os alunos do 11º B produziram os trabalhos em audio e em vídeo que aqui se publicam.
(NOTAS: Os trabalhos estão apresentados tal como foram entregues.)
«Última Hora»
Ricardo Almeida e Filipe Camarneiro
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«Entre Amigas»
Ana Micaela Cunha e Mariana Simões
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«Documentário»
Carlos Daniel e Luís Matias
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«Monforte e Maia apresentam-se»
Soraya e Ricardo Rocha
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«Um Amor Impossível»
Catarina e Cristina
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Leituras
Joana Martins e Mariana Rocha

quinta-feira, 7 de maio de 2009

- Très chic!


.....Entravam então no peristilo do Hotel Central — e nesse momento um coupé da Companhia, chegando a largo trote do lado da Rua do Arsenal, veio estacar à porta.
.....Um esplêndido preto, já grisalho, de casaca e calção, correu logo à portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braços uma deliciosa cadelinha escocesa, de pêlos esguedelhados, finos como seda e cor de prata; depois apeando-se, indolente e poseur, ofereceu a mão a uma senhora alta, loira, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz da suas botinas. O rapaz ao lado, esticado num fato de xadrezinho inglês, abria negligentemente um telegrama; o preto seguia com a cadelinha nos braços. E no silêncio a voz de Craft murmurou:
Très chic.
(...)

.....Baptista trouxera o chá, o charuto do Alencar acabara; e ele continuava na chaise-longue, como amolecido nestas recordações, e cedendo já, num meio adormecimento, à fadiga do longo jantar... E então, pouco a pouco, diante das suas pálpebras cerradas, uma visão surgiu, tomou cor, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde morria numa paz elísia. O peristilo do Hotel Central argava-se, claro ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no colo. Uma mulher passava, alta, com uma carnação ebúrnea, bela como uma deusa, num casaco de veludo branco de Génova. O Craft dizia ao seu lado: Très chic. E ele sorria, no encanto que lhe davam estas imagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloração de coisas vivas.
.....Eram três horas quando se deitou. E apenas adormecera na escuridão dos cortinados de seda, outra vez um belo dia de Inverno morria sem uma aragem, banhado de cor-de-rosa; o banal peristilo do hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com a cadelinha nos braços; uma mulher passava, com um casaco de veludo branco de Génova, mais alta que uma criatura humana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno que remonta ao Olimpo: a ponta dos seus sapatos de verniz enterrava-se na luz do azul, por trás as saias batiam-lhe como bandeiras ao vento. E passava sempre... O Craft dizia: Très chic. Depois tudo se confundia (...).
(idem, p.153)


(Série brasileira inspirada na obra de Eça de Queiroz, "Os Maias", de M. Adelaide Amaral. Edição de Elaine Cristina.) Fonte: Youtube, em 20/04/2009)
(Atenção: esta série é uma ADAPTAÇÃO da obra.)

Ega prevê o futuro de Carlos


.....«— Sou um ressequido! — disse ele [Carlos] sorrindo. — Sou um impotente de sentimento, como Satanás... Segundo os padres da Igreja, a grande tortura de Satanás é que não pode amar.
.....— Que frases essas, menino! — murmurou Ega.
.....Como frases? Era uma atroz realidade! Passava a vida a ver as paixões falharem-lhe nas mãos como fósforos. Por exemplo, com a coronela de hussardos em Viena! Quando ela faltou ao primeiro rendez-vous, chorara lágrimas como punhos, com a cabeça enterrada no travesseiro e aos coices à roupa. E daí a duas semanas, mandava postar o Baptista à janela do hotel, para ele se safar, mal a pobre coronela dobrasse a esquina! E com a holandesa, com Madame Rughel, pior ainda. Nos primeiros dias foi uma insensatez: queria-se estabelecer para sempre na Holanda, casar com ela (apenas ela se divorciasse), outras loucuras; depois os braços que ela lhe deitava ao pescoço, e que lindos braços, pareciam-lhe pesados como chumbo...
.....— Passa fora, pedante! E ainda lhe escreves! — gritou Ega.
(...)
.....Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monóculo no olho:
.....— Tu és extraordinário, menino!... Mas o teu caso é simples, é o caso de Don Juan. Don Juan também tinha essas alternações de chama e cinza. Andava à busca do seu ideal, da sua mulher, procurando-a principalmente, como de justiça, entre as mulheres dos outros. E après avoir couché, declarava que se tinha enganado, que não era aquela. Pedia desculpa e retirava-se. Em Espanha experimentou assim mil e três. Tu és simplesmente, como ele, um devasso; e hás-de vir a acabar desgraçadamente como ele, numa tragédia infernal!
.....Esvaziou outro copo de champanhe, e a grandes passadas pela sala:
.....— Carlinhos da minha alma, é inútil que ninguém ande à busca da «sua mulher». Ela virá. Cada um tem a «sua mulher» e necessariamente tem de a encontrar. Tu estás aqui, na Cruz dos Quatro Caminhos, ela está talvez em Pequim: mas tu, aí a raspar o meu repes com o verniz dos sapatos, e ela a orar no templo de Confúcio, estais ambos insensivelmente, irresistivelmente, fatalmente, marchando um para o outro!... Estou eloquentíssimo hoje, e temos dito coisas idiotas. Toca a vestir. E, enquanto eu adorno a carcaça, prepara mais frases sobre Satanás!"

(in QUEIROZ, Eça de, OS MAIAS, cap. VI, p. 151-152)

sábado, 2 de maio de 2009