REVERENDO BONIFÁCIO

Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era (...)o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em Santa Olávia, e recebera então o nome de Bonifácio: (...) era o «Reverendo Bonifácio»
(in QUEIRÓS, Eça de, Os Maias)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

ANGÚSTIA INEXPLICÁVEL

- Porque não havemos de partir já para a Itália? perguntou ela de repente, procurando a mão de Carlos. Se tem de ser, porque não há-de ser já?... Escusávamos de ter estes segredos, estes sustos!
- Sustos de quê, meu amor? Estamos aqui tão seguros como na Itália, como na China... De resto podemos partir mais depressa, se quiseres... Diz tu um dia, marca um dia!
Ela não respondeu, deixando cair docemente a cabeça sobre o ombro de Carlos. Ele acrescentou, devagar:
- Em todo o caso, compreendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olávia, ver o avô...
Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridão como recebendo dela o presságio dum futuro, onde tudo seria confuso e escuro também.
- Tu tens Santa Olávia, tens teu avô, tens os teus amigos... Eu não tenho ninguém!
Carlos estreitou-a a si, enternecido.
- Não tens ninguém! Isso dito a mim! Nem chega a ser injustiça, nem chega a ser ingratidão! É nervoso; e é também o que os ingleses chamam a «impudente adulteração dum facto.»
Ela ficara aninhada no peito de Carlos, como desfalecida.
- Não sei porquê, queria morrer...
Um largo brilho de relâmpago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova. Os molhos de velas de duas serpentinas, batendo os damascos e os cetins amarelos, embebiam o ar tépido, onde errava um perfume, numa refulgência ardente de sacrário: e as bretanhas, as rendas do leito já aberto punham uma casta alvura de neve fresca nesse luxo amoroso e cor de chama. Fora, para os lados do mar, um trovão rolou lento e surdo. Mas Maria já o não ouviu, caída nos braços de Carlos. Nunca o desejara, nunca o adorara tanto! Os seus beijos ansiosos pareciam tender mais longe que a carne, trespassá-lo, querer sorver-lhe a vontade e a alma: - e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabelos soltos, divina na sua nudez, ela lhe apareceu realmente como a Deusa que ele sempre imaginara, que o arrebatava enfim, apertado ao seu seio imortal, e com ele pairava numa celebração de amor, muito alto, sobre nuvens de ouro...
Quando saiu, ao amanhecer, chovia.
Eça de Queirós, Os Maias, cap. XIV (pp. 458-459)

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