REVERENDO BONIFÁCIO

Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era (...)o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em Santa Olávia, e recebera então o nome de Bonifácio: (...) era o «Reverendo Bonifácio»
(in QUEIRÓS, Eça de, Os Maias)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Resumo




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(Série inspirada na obra Os Maias, de Eça de Queiroz)

Os Novos «Vencidos da Vida»


.......E aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste quarto, durante noites, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente, como uma conclusão lógica. Por fim, dez anos passaram, e aqui estou outra vez...
(...)
.......- Não há nada que me faça mais pena , do que não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.
.......Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enterrara, se, nesses últimos anos, ele não tivera a ideia, o vago desejo de voltar para Portugal...
.......Carlos considerou Ega com espanto. Para quê? Para arrastar os passos tristes desde o Grémio até à Casa Havanesa? Não! Paris era o único lugar da Terra congénere com o tipo definitivo em que ele se fixara: «o homem rico que vive bem». Passeio a cavalo no Bois; almoço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no clube com os jornais, um bocado de florete na sala de armas; à noite a Comédie Française ou uma soirée; Trouville no Verão, alguns tiros às lebres no Inverno; e através do ano as mulheres, as corridas, certo interesse pela ciência, o bricabraque, e uma pouca de blague. Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agradável.
.......- E aqui tens tu uma existência de homem! Em dez anos não me tem sucedido nada, a não ser quando se me quebrou o faetonte na estrada de Saint-Cloud... Vim no Figaro.
.......Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
.......- Falhámos a vida, menino!
.......- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «Vou ser assim, porque a beleza está em ser assim.» E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Às vezes melhor, mas sempre diferente.
Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
.......(...)
.......- É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida – a paixão.
.......- Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!
.......- E que somos nós?- exclamou Ega. – Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão...
.......(...)
.......Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes em dias suaves. E nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada a que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
.......Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Ecclesiastes, em desilusão e poeira.
.......— Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correcto, que é o único que se deve ter na vida.
.......— Nem eu! — acudiu Carlos com uma convicção decisiva. E ambos retardaram o passo, descendo para a Rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrarem ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:
.......— Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje, para o jantar, um grande prato de paio com ervilhas.
E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e sínteses da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!
.......— Oh, diabo!... E eu que disse ao Vilaça e aos rapazes para estarem no Bragança, pontualmente, às seis! Não aparecer por aí uma tipóia!...
.......— Espera! exclamou Ega. — Lá vem um americano, ainda o apanhamos.
.......— Ainda o apanhamos!
.......Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
.......— Que raiva ter esquecido o paiozinho!
Enfim, acabou-se. Ao menos assentámos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma.
.......Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
.......— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...
.......A lanterna vermelha do americano, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega
uma esperança, outro esforço:
.......— Ainda o apanhamos!
.......— Ainda o apanhamos!
.......De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o americano, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.