REVERENDO BONIFÁCIO

Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era (...)o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em Santa Olávia, e recebera então o nome de Bonifácio: (...) era o «Reverendo Bonifácio»
(in QUEIRÓS, Eça de, Os Maias)

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Eusébiozinho, o anjo sovado


.....Enquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona de Afonso, numa mesa baixa, os cristais e as garrafas de soda, Vilaça, com as mãos nos bolsos, de pé e pensativo, olhava a brasa da acha que morria na cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar, como ao acaso:
.....— Aquele rapazito é esperto...
.....— Quem? o Eusebiozinho? — disse Afonso, que se acomodava junto ao fogão, enchendo alegremente o cachimbo. — Eu tremo de o ver cá, Vilaça! O Carlos não gosta dele, e tivemos aí um desgosto horroroso... Foi já há meses. Havia uma procissão e o Eusebiozinho ia de anjo... As Silveiras, excelentes mulheres, coitadas, mandaram-no cá para o mostrar à viscondessa, já vestido de anjo. Pois senhores, distraímo-nos, e o Carlos, que o andava a rondar, apodera-se dele, leva-o para o sótão, e, meu caro Vilaça... Em primeiro lugar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o pior não foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos aparece o Eusebiozinho aos berros pela titi, todo desfrisado, sem uma asa, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um barbante, a coroa de rosas enterrada até ao pescoço, e os galões de ouro, os tules, as lantejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!...
Enfim, um anjo depenado e sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.
.....Bebeu metade da sua soda, e passando a mão pelas barbas, acrescentou, com uma satisfação profunda:
.....— É levado do Diabo, Vilaça!
.....O administrador, sentado agora à borda de uma cadeira, esboçou uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Afonso, com as mãos nos joelhos, como esquecido e vago, Ia abrir os lábios, hesitou ainda, tossiu de leve; e continuou a seguir pensativamente as faíscas que erravam sobre as achas.
.....Afonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara a falar do Silveirinha. Tinha três ou quatro meses mais que Carlos, mas estava enfezado, estiolado, por uma educação à portuguesa: daquela idade ainda dormia no choco com as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava couraçado de rolos de flanelas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do Catecismo de Perseverança. Ele por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá «que, o Sol é que anda em volta da Terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá as ordens ao Sol, para onde há-de ir e onde há-de parar, etc., etc.». E assim lhe estavam arranjando uma almazinha de bacharel...

in OS MAIAS, capítulo III, Biblioteca Digital Colecção CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA, © Porto Editora

Sem comentários: